O fantasma do teatro

30 dezembro 2009

"Há algo de podre no reino da Dinamarca"

Como não podia deixar de ser, começo o texto sobre Hamlet falando do fantasma; essa figura mórbida que introduz, já na primeira cena, todo o clima do drama: a natureza diabólica, que oscila entre o risível e o terrível, e assombra todos a quem toca.

Quando o fantasma lhe aparece, o jovem príncipe ainda está de luto pela morte do pai. Enfraquecido e sensibilizado, ele se agarra à esperança de estar vendo o honrado pai morto naquela figura que, ao decorrer da peça, fica cada vez mais distinta daquela do Rei Hamlet. Com a revelação do crime e o pedido de justiça do fantasma - que o orienta a matar o tio em nome da honra - se dá início ao confuso caminho traçado pela personalidade deformada do príncipe, que fará tudo aquilo acabar em tragédia.

Hamlet tem um incrível desenvolvimento psicológico durante a peça, de melancólico passivo se torna louco irado, e da loucura volta a melancolia. Sua loucura, que ao início é uma máscara para esconder seus macabros planos de justiça acaba por consumi-lo, porque no lugar de justiça o que ele quer é vingança. O tempo todo esse personagem é guiado por seus desejos baixos e mesquinhos, em nenhum momento se comporta como um príncipe, em momento algum percebe seu papel e responsabilidade naquele emaranhado costurado pelo destino. Se batendo de cá pra lá, suborna sua consciência durante todo o tempo, dizendo que faz algo nobre quando por dentro o consome a chama do ressentimento. 

Seu descontrole é tão intenso que ele acaba por perder miseravelmente tudo. Perde um bom e fiel conselheiro do trono, matando-o com os próprios punhos num ataque em parte fingido, em parte real. Perde a mulher que o ama, lançando-a em desgosto tão profundo que a faz surtar e cometer o pior dos crimes. Perde aquele que seria seu virtuoso cunhado, perde a mãe, perde a si mesmo. E ainda perde o reino de seu pai, entregando a coroa a um príncipe derrotado em batalha! 

Como diríamos hoje em dia: o Hamlet é um desastre! Ele faz tudo errado desde o início, e o início é o fantasma, então vamos voltar a ele.

Esse pitoresco personagem, que aparece nas horas mais sensíveis e fracas do príncipe, é o símbolo da imagem, da ilusão, do engano. Transvestido de pai, como um palhaço se transveste de rei, ele joga com os desejos de Hamlet e se torna a causa de toda catástrofe. Seu procedimento, apesar de não anunciado, é diabólico: mistura mentiras e verdades, incita uma paixão baixa com justificativas racionais, causa a destruição e depois some. É ousado dizer que aquele fantasma é na verdade um demônio? Que o verdadeiro pai de Hamlet está agora em paz, queimando no fogo do inferno? É. Mas não consigo parar de pensar nisso, visto o caráter do fantasma e seus meios de ação. Visto como ele é deformado e ridículo. E vendo como ele destrói a pouca estabilidade do príncipe com uma destreza espetacular, falando só o necessário para que o caos se instale no reino da Dinamarca.

(É claro que aqui caberiam boas discussões sobre a cultura cristã da época e como o público de Shakespeare via o fantasma, - pois que eu saiba, no cristianismo, esse tipo de aparição é demoníaca e ponto. - mas isso não é assunto para um blog.)

Hamlet passa de vítima a culpado de toda aquela situação, sua fragilidade e moleza espiritual é um bom exemplo de como tudo pode ser arruinado pela falta de prudência e comedimento. É indiscutível que ele devesse matar o tio e exilar a mãe, mas não deveria fazer isso por ódio ou vingança, e sim por dever de restituir o poder a quem é devido - no caso a ele mesmo. A grande mensagem que vejo nesse drama é que não importa muito o que se passa por fora; se suas intenções não são honestas, também não serão os seus atos. E por mais que os atos à primeira vista pareçam nobres eles acabam, ao final, por revelar a sujeira que os motivou.

Para mim Hamlet é, acima de tudo, uma estória sobre o duelo do homem com sua consciência. Um enredo que ensina por negação. Que mostra os caminhos que levam à perdição e nos previne contra a nossa fragilidade diante de nós mesmo.

Segundo o Wilhelm, o Hamlet é gordo. O Hamlet é gordo! Eu nunca pensaria nisso, mas se encaixa perfeitamente.

1 respostas:

Rafael Falcón disse...

Essa estória de fantasmas se fazendo passar pelo pai das pessoas eu já conheço... "Come to me, my angel of music"?

A psicologia de Hamlet é muito obscura. Tenho certeza de que esse fantasma já foi o inconsciente, o superego, a ideologia burguesa oprimindo Hamlet... De um modo ou de outro, a palavra "diabólico" resume bastante bem qualquer uma dessas interpretações.

O problema é que Hamlet não quer se vingar de fato, ou pelo menos há uma parte forte dele que se nega a vingar-se. Ele se esconde atrás da loucura fingida e tenta atrasar a vingança; suas ações durante a peça são mais contraditórias do que os livros de Nietzsche, e fica difícil associar um padrão psicológico único ao principezinho. Dizer que ele enlouqueceu não resolve. É preciso saber como ele enlouqueceu e que tipo de loucura é aquela.

Quanto ao fantasma, não há dúvidas de que ele foi o gatilho certo para guiar Hamlet até sua perdição. Que Shakespeare tenha pensado nele como um demônio é mais do que possível.

Sem comentários quanto à gordura do Hamlet... Nada que Goethe tenha escrito no Fausto pode ser mais genial que essa observação.