O estado de graça

10 novembro 2009

Só deu uma mordida e depositou a maçã na mesa. Porque alguma coisa desconhecida estava suavemente acontecendo. Era o começo -- de um estado de graça.
Só quem já tivesse estado em graça, poderia reconhecer o que ela sentia. Não se tratava de uma inspiração, que era uma graça especial que tantas vezes acontecia aos que lidavam com artes.
O estado de graça em que estava não era usado para nada. Era como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existia. Nesse estado, além da tranqüila felicidade que se irradiava de pessoas lembradas e de coisas, havia uma lucidez que Lóri só chamava de leve porque na graça tudo era tão, tão leve. Era uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe.
(...)
No estado de graça, via-se a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganhava uma espécie de nimbo que não era imaginário: vinha do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passava-se a sentir que tudo o que existe -- pessoa ou coisa -- respirava e exalava uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Esta energia é a maior verdade do mundo e é impalpável.
(...)
As descobertas naquele estado eram indisíveis e incomunicáveis.
(...)
Depois lentamente saiu daquela situação. Não como se estivesse estado em transe -- não houvera nenhum transe -- saía-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este o é. Também já era um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra e o céu, queria-se mais e mais. Mas era inútil desejar: só vinha espontaneamente.
(...)
O Deus sabia o que fazia: Lóri achava que estava certo o estado de graça não nos ser dado frequëntemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o "outro lado" da vida, que esse outro lado também era real mas ninguém nos entenderia jamais: perderíamos a linguagem em comum.
Também era bom que não viesse tantas vezes quantas queria: porque ela poderia se habituar à felicidade. Sim, porque em estado de graça se era muito feliz.

[Livro dos prazeres, Clarice Lispector]

***

Essa foi muito melhor que a do Proust!

9 respostas:

Rafael Falcón disse...

Olha só, o que o Proust descreveu parece com o que o Spinoza disse. Isso aí não tem nada a ver. Se era isso que você chamava de sensação de eternidade, escolheu um nome muito esquisito...

Bom, pelo menos agora você pode saber que quase todo mundo já sentiu isso. Já o que o Proust e Spinoza falam... sei não.

Day disse...

Rafael,
isso aqui tem a ver, sim.

A diferença é que nesse caso a coisa se particulariza um pouco. E parece que a sensação se estende um pouco mais. Mas é a mesma coisa, ou pelo menos é algo muito parecido.

Eu chutaria que a diferença está na intensidade. E, obviamente, na racionalização que se faz depois, e que é o que vira texto. Mas os indícios de que é a mesma coisa são enormes.

Você não sabe porque você não sentiu.

Rafael Falcón disse...

Você é tola. Fala que não senti na perspectiva de ofender.

Senti o estado de graça da Clarice, sim. Sei exatamente como é o que ela está descrevendo, cada palavra se encaixa. E é uma descrição muito boa do que senti.

Você já leu o que Valéry escreveu sobre "universo poético" ou "universo musical"? Parece uma especificação, uma tradução disso.

Mas repito: não é o que Proust descreveu. Aquilo eu não lembro de ter sentido.

Day disse...

Meu filho,
diz aí o que foi que Proust descreveu.

E sobre Clarice e Espinosa, o que não falta são relações.

Aliás, é curioso que ela chame o tal estado de "graça" quando Espinosa, em português, é tradicionalmente traduzido por "beatitude" um estado semelhante.

Aliás, é mais curioso ainda que nos dois casos os termos religiosos estejam se referindo ao homem que vive na imanência, que não vê Deus como transcendente. Homem que chega a tal sensação por meio do terceiro gênero de conhecimento, e que experimenta um tipo de revelação, mas que não é revelação religiosa... enfim. É difícil falar disso porque os termos se confundem muito.
Mas vamos almoçar hoje. E vamos falar pessoalmente.
Se render faço outro post.

;)

Day disse...

E não, eu não li o que o Valery diz sobre nada.
E você sabe disso.

QUINTA CAMADA!

Rafael Falcón disse...

Não dá mais pra discutir por comentários com você, quer dizer, com a sua auto-imagem. Está parecendo as pessoas da comunidade da letras. Pra te convencer de algo vou ter que te humilhar.

Portanto, não comento mais no seu blog. Discussão comigo, agora, só pessoalmente. Bye.

Day disse...

Putaquepariu, Rafael, você tá muito chato!

L.M. disse...

Facilitaria se você postasse o trecho do Proust que você compara ao estado de graça da Clarice. Se for a cena da madalena, como eu já disse hoje mais cedo, não acho que seja a mesma coisa. Era válido também postar o que o Espinosa disse, que vocês sabem o que é mas o resto dos mortais não sabem.

Day disse...

É.
Eu preciso pelo menos tentar fazer um post sério falando sobre o assunto, e aí juntar tudo, explicar tudo, e vê onde as coisas se encaixam e onde elas se perdem.

Desse jeito solto não dá pra ir pra lugar nenhum, de fato.

Mas como todos vocês estão dizendo que a coisa não parece ser do jeito que eu achei que era, eu vou me dar um tempo pra pensar melhor.

Talvez nas férias saia um post decente falando disso.