Autobiografia - cena I

24 fevereiro 2010

Ouvia-se o choro sofrido de todos os cantos do pequeno apartamento quadrado de quinto andar. Ela tapou os ouvidos num ato de desespero - o choro abafado gritava mais alto por não ser atendido. Deixou então os braços cairem ao lado do corpo como quem desiste de se defender e caminhou até o berço. Tirou dali, com os braços derrotados, aquele corpo miúdo e quase decidida - como quem se livra da prova dum crime - foi para a janela. O chorou cessou.

A lua minguava no céu - aquela lua que tantas vezes serviu de alento - aquela lua agora era pálida, meio morta, indiferente. E as duas, meio vivas, se balançavam indecisas entre o calor abafado do apartamento de quinto andar e o frio refrescante da noite, do pátio vazio, da lua que morria.

Outro berro e o choro preencheu novamente seu corpinho fraco, faminto. Já pequena ela descobria que o sentido da sua vida era continuar viva, e chorava. O pior sofrimento que já conhecera até então, a fome, foi naquela noite vencido pelo pavor da morte iminente.

E pela primeira vez na breve vida ela chorou não por seu corpo, que pendia fraco, mas por sua alminha recém-nascida.

2 respostas:

Anônimo disse...

Sem uma justificativa consistente pode soar da boca pra fora, aleatório, mas vou dizer o que se estampou em meu pensamento por conta desse texto:

A contemporaneidade ainda tem alma para a literatura.

Day disse...

=)

Uau, depois de ler seu último post do blog eu fico realmente lisonjeada.

=*