O tronco do diabo

05 fevereiro 2010

Era uma casa velha, e como toda casa velha era feita de madeira e gemia a cada pisada. Julio gostava de subir e descer a escada que levava aos quartos. Paula, por sua vez, não saia da janela onde se pendurava para observar o enorme quintal que se estendia atrás da sua nova casa velha. Ainda mais velha era a árvore que ocupava o final do terreno - o jardineiro havia dito que já estava ali antes mesmo da casa ser erguida e que parte do assoalho provinha de seus galhos grossos e escuros. E Paula não saia da janela...

Por serem da mesma idade os dois irmãos dormiam no mesmo quarto. Julio bem que podia ter um quarto de menino se quisesse, mas a vontade de ficar junto da irmã o fazia suportar com gosto aquela decoração cor-de-rosa; era durante a noite, afinal, que mais se precisava de companhia.

- Julinho? Já dormiu? - ela sussurrou da janela - você dormiu? - o menino soltou um gemido que poderia dizer qualquer coisa e então ela continuou - acho que vi a árvore se mexer.

Julio levantou os olhos - É por causa do vento. Não é?..

- Não, não tem vento. E está mexendo outra vez...

Ele pulou da cama e empulerou na janela. Assustado  viu os grandes galhos balançarem como braços enormes teteando no escuro. O crepitar de folhas secas podia ser ouvido e uma rajada repentina de vento gelado os fez abandonar a janela e fechar a cortina com pressa.

Dali os dois se enfiaram nas cobertas e não pregaram o olho até que o dia clareasse. Na primeira hora da manhã cruzaram o quintal na direção da árvore. Era enorme e antiga como se vivesse há muitos séculos, seu tronco era escuro e escamado, todo retorcido em nós que, estranhamente... lembravam rostos humanos!

Os meninos sentiram um calafrio percorrer a espinha: eram feições infantis contorcidas em dor e agonia e cravadas naquele tronco tenebroso. Alguma sensação de terror recém descoberta os fez correr para longe dali. 

Mas as horas passaram e mais uma noite caiu. E eles agora podiam ouvir o grito abafado de crianças desesperadas, enquanto os galhos se chacoalhavam nas trevas daquele quintal de casa velha. Julio saiu do quarto sob os protestos de Paula. Ele havia tomado a decisão repentina de enfrentar o próprio medo e ver de perto se tudo aquilo era mesmo... era mesmo tudo aquilo. Julio era um rapazinho corajoso que infelizmente nunca mais foi visto.

Passado um mês do sumiço do irmão Paula resolveu contar ao jardineiro tudo o que havia acontecido. Encostando o machado no chão e se empertigando, ele começou a retalar essa estória:

Há muito tempo atrás, essa região que agora é de fazenda, era uma grande e densa floresta, refúgio de feras e de um grupo de bruxas cruéis. Essas bruxas celebravam a juventude sacrificando crianças e bebendo seu sangue. Mas queriam mais. Queriam também a conservação de seu templo. Por isso escolheram a mais forte e vigorosa das árvores e a ofereceram em ritual ao diabo, que desde aquele dia passou a habitar em seu tronco. Dali por diante as bruxas ofereciam as crianças para a árvore, que as engolia e extraia o sangue vagarosamente para gerar frutos malignos que alimentavam a juventude das bruxas.  Depois de certo tempo a floresta foi destruida, as bruxas queimadas e a árvore parou de dar frutos...

Paula estava apavorada ao final da estória, mas o jardineiro riu e completou - mas é claro que isso tudo não passa de lenda... 

- Pois vamos ver! - Ela pegou a tesoura de jardinagem e correu para os fundos do quintal. O jardineiro a seguiu. Ao cravar no tronco a tesoura afiada, no lugar dum filete de seiva, jorrou sangue. A árvore se contorceu num urro de dor.

No dia seguinte estava tudo pronto, um machado novinho esperava pelas mãos firmes do jardineiro que, ao cair da tarde, começou a aplicar golpes certeiros no tronco velho. Muito sangue jorrou, muito choro e gritos de muitas crianças foram ouvidos. Num baque surdo o tronco pesado tombou morto sobre a terra fofa do quintal. Os nós se retorceram pela última vez, dando àquelas feições a derradeira chance de descansar em paz.

Mas dentre as dezenas de rostos um nunca sairá da memória de Paula: o rosto de Julinho, enegrecido, esculpido no tronco do diabo, simbolizando a vida verde colhida antes do tempo.

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Livre adaptação de "A estória da árvore" contada pelo Tio Ito quando eu tinha sete anos.

4 respostas:

Guilherme Hobbs disse...

Eu gostei.

Podia segurar o timing em algumas partes, contar uns detalhes, pra enfatizar o imporante por contraste com o irrelevante. Além de que, numa estória de suspense, o timing é o suspense! Fora isso, a escrita tá ótima e o final, apesar de óbvio, não soa óbvio. Muito habilidoso da sua parte mencionar logo no início um medo comum (da noite, da solidão no quarto) para nos preparar o espírito para "sentir" depois o medo irreal e fantástico dos personagens. A narrativa abstrata/infantil (cadê os pais? qual a idade dos irmãos? qual foi a repercussão do irmão ter desaparecido? ninguém pensou em mudar de casa? por que ninguém falou com o jardineiro antes? ele nunca tinha visto a árvore . . . se expressar antes? etc etc) não é exatamente um problema em estórias fantásticas, mas a sombra deve ser sempre compensada por luz clara. Em outras palavras: não é preciso explicar tudo, ou melhor, muita coisa tem que soar incompreensível mesmo -- MAS a parte explicada tem que ter substância, ser bem verossímil.

Mas, no final das contas, entendo a sua angústia bastante justificável de escrever algo com mais de duas linhas num blog. Como nós sabemos, não consta que alguém tenha jamais lido um post com mais de duas linhas e meia.

Day disse...

Eba! Valeu por criticar!
Você pegou justamente nos pontos certos.

Vou começar pelo timing. Este é um conto de terror, não é de suspense. No de suspense a atmosfera é outra, é um jogo de esconde onde as coisas são muito suaves e quase sempre estão ocultas. E, em suspense, a revelação precisa ser milimetricamente medida, porque senão tudo dá errado. Num conto de terror/horror, como é o caso deste, não existe essa "tensão". Existe tensão, mas de outro tipo. As coisas são mais bruscas, mais brutais. São feitas pra causar uma espécie de choque-repulsivo e não expectativa. Por isso minha escolha em investir muito mais em imagens do que em eventos. A tentativa foi fazer um conto em que as coisas acontecessem rápido. E simplesmente acontecessem, sem maiores desenrolos.

Todos os dados biográficos foram ocultados propositalmente. A idade dos irmãos dá pra se deduzir das poucas informações fornecidas (é uma idade em que se tem um quarto cor-de-rosa, onde se tem medo de escuro e onde se brinca de subir e descer escadas. Quanto você chutaria? 7? 8? Eu chutaria 7, mas pode ser a idade que mais parecer adequada ao leitor). Os pais foram estrategicamente expulsos da estória, porque eles simplesmente não fariam diferença. Colocar a figura da mãe seria inserir no enredo um elemento de ternura que eu não queria que aparecesse. A mãe só serveria para chorar pelo sumiço do filho, e um choro no meio da narração me pareceu broxante. Deduz-se livremente o que quiser, o menino sumiu, o que mais se pode fazer? A figura do jardineiro substitui a do pai. É ele quem resolve o problema, sendo assim o pai seria um personagem excedente e também inútil. E não vi sentido interno em explicar a repercursão do sumiço do menino; imagina, gastar um parágrafo inteiro só pra isso!
Para ver a árvore se expressar é preciso ficar pendurado na janela durante a noite, coisa que o jardineiro não costumava muito fazer. Mas isso é uma coisa que podia ter sido melhor explicada, sim. A árvore começa a reagir porque ela sente a presença das crianças. Antes ela estava adormecida, porque não comia, e não gerava frutos. Agora ela tinha acordado. Isso ficou implícito demais, né?

E, sim, eu tentei fazer ele bem curto, o máximo que deu. Pensei até em postar em duas partes.., Mas aí está, agora vai ficar assim grandão mesmo.

Valeu pelo comentário!
;)

L.M. disse...

Achei muito bem escrito. Só não curti o final e, em geral, o "sentido da história". Gostaria mais se não terminasse tão fechadinho, tão "tonal". Achei interessantíssimo o estilo ágil, que conta a história a machadadas. Até momento do sumiço de Julinho dá pra se dizer que está perfeito, mas então vem o relato brochante do jardineiro explicando tudo. "Bah".

O clímax da qualidade do estilo está na frase: Julio era um rapazinho corajoso / que infelizmente nunca mais foi visto.

Na primeira metade da sentença, espera-se que se siga uma descrição, breve que seja, da personalidade do Julio. Mas - qual! - em vez disso você transgride nossas expectativas e extirpa o menino da história. É só depois dessa frase que o conto começa a perder qualidade, em função do que já mencionei, o fato de você sacrificar toda fantasia, todo suspense, por uma explicação minuciosa da razão dos acontecimentos.

Se você ler Edgar Allan Poe, verá que deixar certas explicações no escuro é um artifício precioso para se construir o éthos do conto de terror.

Day disse...

Sim, sim!

Eu confesso que eu mesma não consegui ler a estorinha muitas vezes - eu li e reli esse conto muitas vezes! - chegava na hora da estória do jardineiro eu pulava pro final.
Mas é o seguinte, esse, teoricamente, era pra ser um conto infantil. Foi por isso que eu coloquei a "explicação" das coisas. E o final segue a mesma linha. Não escrevi pra ser um conto surpreendente. Na verdade, eu fiz ele com base nas coisas que ando lendo de terror, e dificilmente se acha algo imprevisto nessas estórias.
Mas o final "aberto" pode ser uma boa opção, sim. Pode deixar as coisas no ar e criar um clima adequado ao gênero... Eu vou pensar nisso.

Valeu pelas dicas!

;)